São Cipriano de Cartago
(†258) Bispo de Cartago e Mártir
«A Unidade da Igreja»
I Parte:
1 - VIGIAI, O INIMIGO VEM DISFARÇADO
 
(1)
 "Vós sois o sal da terra" (Mt 5,3), diz o Senhor, e ainda nos recomenda
 que sejamos simples pela inocência e prudentes na simplicidade [Mt 
10,16]. Nada pois é mais importante para nós, irmãos diletíssimos, 
quanto vigiar com todo o cuidado para descobrir logo e, ao mesmo tempo, 
compreender e evitar as ciladas do inimigo traiçoeiro. Sem isso, embora 
sejamos revestidos de Cristo [Rom 13,14; Gál 3,27], que é a Sabedoria de
 Deus Pai [1Cor 1,24], nos mostraríamos menos sábios na defesa da 
salvação.
(2)
 De fato, não devemos temer só a perseguição e os vários ataques que se 
desencadeiam abertamente para arruinar e abater os servos de Deus. 
Quando o perigo é manifesto, a cautela é mais fácil. O nosso espírito 
está mais pronto para lutar contra um adversário abertamente declarado. É
 mais necessário ter medo e guardar-nos do inimigo que penetra às 
escondidas, e se vai insinuando oculta e tortuosamente com falsas 
imagens de paz. Bem lhe convém o nome de serpente! Essa foi sempre a sua
 astúcia, esse foi sempre o tenebroso e pérfido engano com que tenta 
seduzir o homem.
(3)
 Já no começo do mundo mentiu e enganou as almas crédulas e ingênuas 
(dos nossos primeiros pais), acariciando-as com palavras falazes [Gen 
3,1ss] . Igualmente ousou tentar a Cristo, nosso Senhor, e se aproximou 
dele insinuando, disfarçando, mentindo. Foi contudo desmascarado e 
repelido. Desta vez, foi derrotado porque foi reconhecido e descoberto 
[Mt 4,1ss].
2 - ACIMA DE TUDO: CUMPRIR OS MANDAMENTOS DE CRISTO
 
(1)
 Sirvam-nos estes exemplos. Evitemos o caminho do homem velho, para não 
cair no laço da morte. Sigamos as pisadas de Cristo vencedor, para que, 
usando cautela diante do perigo, alcancemos a verdadeira imortalidade.
(2)
 Mas, como poderíamos chegar à imortalidade, sem observar os mandamentos
 de Cristo? São eles os únicos meios para combater e vencer a morte. Ele
 nos avisa: "Se queres chegar à vida, observa os mandamentos" (Mt 
19,17), e, de novo: "Se fizerdes o que vos mando, já não vos chamarei 
servos, mas amigos" (Jo 15,15).
(3)
 Esses são os que ele diz serem fortes e firmes. Esses têm fundamento 
sólido na pedra, e gozam de inabalável resistência contra todas as 
tempestades e as rajadas do século. "Quem ouve as minhas palavras - diz 
ele - e as cumpre é semelhante ao homem sábio que construiu a sua casa 
sobre a pedra. Desceu a chuva, desabaram as correntes, sopraram os 
ventos, batendo contra aquela casa, e ela não caiu porque fora fundada 
na pedra" (Mt 7,25).
(4)
 Devemos, pois, prestar atenção às suas palavras, devemos aprender e 
praticar o que ele ensinou e o que fez. Como poderia asseverar que 
acredita em Cristo aquele que não cumpre o que Cristo mandou? E como 
conseguirá o prêmio da fé aquele que recusa a fé no que foi mandado? 
Fatalmente ele irá vacilando, à ventura, e, arrastado pelo espírito do 
erro, será varrido como pó agitado pelo vento.
(5) Nunca poderão conduzir à salvação os passos daquele que não adere à verdade da única via que salva.
3 - O DEMÔNIO É O AUTOR DOS CISMAS
 
(1)
 Devemos pois guardar-nos, irmãos caríssimos, não só dos males que 
aparecem claramente como tais, mas também, como já disse, daqueles que 
nos enganam pela sutileza da astúcia e da fraude.
(2)
 Pois bem, vede agora a que ponto chega a astúcia e a sutileza do 
inimigo. Veio Cristo ao mundo. Veio a luz para os povos e resplandeceu 
para a salvação dos homens [Lc 2,32]. Com isto ficou descoberto e 
derrotado o antigo adversário. Os surdos abrem os ouvidos às graças 
espirituais, os cegos abrem os olhos a Deus, os enfermos ficam são ao 
ganhar a saúde eterna, os coxos correm à Igreja, os mudos soltam as suas
 línguas na oração [Mt 11,5; Lc 7,22]. Aumenta dia a dia o povo fiel, 
abandonam-se os velhos ídolos, tornam-se desertos os seus templos.
(3)
 Então, o que faz o malvado? Inventa nova fraude para enganar os 
incautos com o próprio título do nome cristão. Introduz as heresias e os
 cismas para derrubar a fé, para contaminar a verdade e dilacerar a 
unidade. Assim, não podendo mais segurar os seus na cegueira da antiga 
superstição, os rodeia, os conduz ao erro por novos caminhos. Rouba à 
Igreja os homens e, fazendo-lhes acreditar que alcançaram a luz e se 
subtraíram à noite do século, envolve-os ainda mais nas trevas: não 
observam a lei do Evangelho de Cristo e se dizem cristãos, andam na 
escuridão e pensam que possuem a luz, nisto são iludidos e lisonjeados 
pelo adversário, que, como diz o Apóstolo, "se transfigura em anjo de 
luz" (2Cor 11,14).
(4)
 Disfarça seus ministros em ministros de justiça, ensina-lhes a dar à 
noite o nome de dia, à perdição o nome de salvação, ensina-lhes a 
propalar o desespero e a perfídia sob o rótulo da esperança e da fé, a 
apregoar o Anticristo com o nome de Cristo. Mestres na arte de mentir, 
diluem com as suas sutilezas toda a verdade.
(5)
 Isto acontece, irmãos caríssimos, porque não se bebe à fonte mesma da 
verdade, não se busca aquele que é a Cabeça, nem se observam os 
ensinamentos do Mestre celestial.
4 - "TU ÉS PEDRO, E SOBRE ESTA PEDRA..."
 
(1)
 Quem presta atenção a estes ensinamentos não precisa de longo estudo, 
nem de muitas demonstrações. A prova da nossa fé é fácil e compendiosa.
(2)
 Assim fala o Senhor a Pedro: "Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta 
pedra edificarei a minha Igreja e as portas dos infernos não a vencerão.
 Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus e tudo o que ligares na terra 
será ligado também nos céus, e tudo o que desligares na terra será 
desligado também nos céus" (Mt 16,18-19).
(3)
 Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição, 
tenha comunicado igual poder a todos os Apóstolos, dizendo: "Como o Pai 
me enviou, eu vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo, a quem 
perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados, a quem os retiverdes 
ser-lhe-ão retidos" (Jo 20,21-23), todavia, para tornar manifesta a 
unidade, dispôs com a sua autoridade que a origem da unidade procedesse 
de um só.
(4)
 É verdade que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo 
recebido igual parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa
 pela unidade a fim de que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
(5)
 O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja 
única quando diz no Cântico dos Cânticos: "Uma só é a minha pomba, a 
minha perfeita, única filha da sua mãe e sem igual para a sua 
progenitora" (Cant 6,9).
(6)
 Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda a fé?
 Aquele que resiste e faz oposição à Igreja poderá confiar que ainda 
está na Igreja?
(7)
 Paulo apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da 
unidade, dizendo: "Um só corpo e um só espírito, uma é a esperança da 
vossa vocação, um Senhor, uma fé, um Batismo, um só Deus" (Ef 4,4-5).
(8)
 E, depois da ressurreição, diz ao mesmo: "Apascenta as minhas ovelhas" 
(Jo 21,17). Sobre ele só constrói a Igreja e lhe manda que apascente as 
suas ovelhas. Embora comunique a todos os Apóstolos igual poder, todavia
 institui uma só cátedra, determinando assim a origem da unidade.
(9)
 É verdade que os demais [Apóstolos] eram o mesmo que Pedro, mas o 
primado é conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja
 e uma só cátedra. Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, 
que deve ser apascentado por todos os Apóstolos em unânime harmonia.
(10)
 Aquele que não guarda esta unidade, proclamada também por Paulo, poderá
 pensar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de Pedro, 
sobre o qual foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na 
Igreja?
5 - A IGREJA ÚNICA E UNIVERSAL: MUITOS SÃO OS RAIOS, UMA A LUZ...
 
(1)
 Esta unidade devemos guardar e exigir com firmeza, especialmente nós, 
bispos, que na Igreja presidimos, para dar prova de que o episcopado 
também é um e indiviso. Ninguém engane os irmãos com mentiras, ninguém 
corrompa a pureza da fé com pérfidos desvios.
(2)
 Uma só é a ordem episcopal e cada um de nós participa dela 
completamente. Mas a Igreja também é uma, embora, em seu fecundo 
crescimento, se vá dilatando numa multidão sempre maior.
(3)
 Assim muitos são os raios do sol, mas uma só é a luz, muitos os ramos 
de uma árvore, mas um só é o tronco preso à firme raiz. E quando de uma 
única nascente emanam diversos riachos, embora corram separados e sejam 
muitos, graças ao copioso caudal que recebem, todavia permanecem unidos 
na fonte comum.
(4)
 Se pudéssemos separar o raio do corpo do sol, na luz assim dividida já 
não haveria unidade. Quando se quebra um ramo da árvore, o ramo quebrado
 já não pode vicejar. Se separamos um regato da fonte, ele secará.
(5)
 Igualmente a Igreja do Senhor, resplandecente de luz, lança seus raios 
no mundo inteiro, mas a sua luz, difundindo-se em toda a parte, continua
 sendo a mesma e, de modo nenhum, é abalada a unidade do corpo.
(6)
 Na sua exuberante fertilidade, estende os seus ramos em toda a terra, 
derrama as suas águas em vivas torrentes, mas uma só é a cabeça, uma a 
fonte, uma a mãe, tão rica nos frutos da sua fecundidade. Do parto dela 
nascemos, é dela o leite que nos alimenta, dela o Espírito que nos 
vivifica.
6 - ÚNICA ESPOSA DE CRISTO: NÃO PODE TER DEUS POR PAI, QUEM NÃO TEM A IGREJA POR MÃE.
 
(1)
 A Esposa de Cristo não pode tornar-se adúltera, ela é incorruptível e 
casta [Cf Ef 5,24-31]. Conhece só uma casa, observa, com delicado pudor,
 a inviolabilidade de um só tálamo. É ela que nos guarda para Deus e 
torna partícipes do Reino os filhos que gerou.
(2)
 Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica 
privado dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo 
não chegará aos prêmios de Cristo. Torna-se estranho, torna-se profano, 
torna-se inimigo.
(3)
 Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém 
se pôde salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da 
Igreja [nota: aqui Cipriano fala dos obstinados que, conhecendo a 
verdade, insistem, por ódio ou comodismo pagão, em se apartar da Igreja 
de Cristo].
(4)
 O Senhor nos alerta e diz: "Quem não está comigo está contra mim, quem 
comigo não recolhe, dissipa" (Mt 12,30). Quem rompe a paz e a concórdia 
de Cristo trabalha contra Cristo. Quem faz colheita alhures, fora da 
Igreja, esse dissipa a Igreja de Cristo.
(5)
 Diz ainda o Senhor: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,30), e do Pai, do 
Filho e do Espírito Santo está escrito: "Estes três são um" (1Jo 5,7). 
Como poderá alguém pensar que esta unidade da Igreja, decorrente da 
própria firmeza da unidade divina, e tão conforme com este celeste 
mistério, pode ser rompida e sacrificada ao arbítrio de vontades 
opostas? Quem não observa esta unidade não observa a lei de Deus, não 
observa a fé do Pai e do Filho, não possui nem a vida, nem a salvação.
7 - A TÚNICA INCONSÚTIL DE CRISTO
 
(1)
 Este sacramento da unidade, este vínculo de concórdia inviolada e sem 
rachadura, é figurado também pela túnica do Senhor Jesus Cristo. Como 
lemos no Evangelho, ela não foi dividida, nem, de modo algum, rasgada, 
mas sorteada. Isto quer dizer que quem toma a veste de Cristo e tem a 
dita de se revestir do próprio Cristo [Rom 13,14; Gál 3,27], deve 
receber a sua túnica toda inteira e possuí-la intacta e sem divisão.
(2)
 Diz a divina Escritura: "Quanto à túnica, visto que, desde a parte 
superior, era feita de uma única tecedura, sem costura alguma, disseram:
 não a dividamos, mas lancemos-lhe a sorte para ver a quem toca" (Jo 
19,23-24). A unidade da túnica derivava da sua parte superior - em nosso
 caso, do céu e do Pai celeste. Aquele que a recebia e guardava não 
podia rasgá-la de modo nenhum, de fato ela era resistente e sólida por 
ser constituída de um modo inseparável.
(3) Não pode possuir a veste de Cristo aquele que rasga e divide a Igreja de Cristo.
(4)
 O contrário aconteceu à morte de Salomão, quando o seu reino e o povo 
deviam ser divididos. O profeta Aías, indo ao encontro do rei Jeroboão 
no campo, cortou o seu manto em doze partes, dizendo: "Toma para ti dez 
partes, porque assim diz o Senhor: eis que eu divido o reino da mão de 
Salomão, a ti darei dez cetros e dois ficarão para ele, por causa do meu
 servo Davi e de Jerusalém, a cidade eleita em que eu pus o meu nome" 
(1Rs 11,30-36). Para separar as doze tribos de Israel, o profeta dividiu
 o seu manto.
(5)
 Mas o povo de Cristo não pode ser dividido, e por isso a sua túnica, 
que era um todo feito de uma só tecedura, não foi dividida por aqueles 
que a deviam possuir. Ficando uma só, bem firme na sua contextura, ela 
mostra a união e a concórdia do nosso povo, isto é, daqueles que são 
revestidos de Cristo. Por este sinal sagrado da sua veste, proclamou ele
 a unidade da Igreja.
8 - FIGURAS DO ANTIGO TESTAMENTO: RAABE, O CORDEIRO PASCAL
 
(1)
 Portanto quem será tão celerado e pérfido, tão louco pelo furor da 
discórdia, para pensar como possível ou até para ousar romper a unidade 
de Deus, a veste do Senhor, a Igreja de Cristo?
(2)
 Ainda uma vez nos avisa ele no Evangelho dizendo: "E haverá um só 
rebanho e um só pastor" (Jo 10,16). E como se pode pensar que, num mesmo
 lugar, existam muitos pastores e muitos rebanhos?
(3)
 O apóstolo Paulo, por sua vez, inculcando esta mesma unidade, suplica e
 exorta: "Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que 
todos digais as mesmas coisas e não se dêem cismas entre vós. Sede 
unidos no mesmo sentimento e no mesmo pensamento" (1Cor 1,10) E de novo:
 "Sustentando-vos mutuamente no amor, esforçando-vos por conservar a 
unidade do Espírito na união da paz" (Ef 4,2-3).
(4)
 Achas tu que alguém pode afastar-se da Igreja, fundar, a seu arbítrio, 
outras sedes e moradias diversas e ainda perseverar na vida? Ouve o que 
foi dito a Raabe, na qual era prefigurada a Igreja: "Recolhe teu pai, 
tua mãe, teus irmãos e toda a tua família junto de ti, na tua casa, e 
qualquer um que ouse sair fora da porta da tua casa, será ele próprio 
culpado da sua perda" (Jos 2,18-19).
(5)
 Igualmente o sacramento da Páscoa [antiga], como lemos no Êxodo, exigia
 que o cordeiro, morto como figura de Cristo, fosse comido numa só casa.
 Eis as palavras de Deus: "Seja comido numa só casa, não jogueis fora da
 casa carne alguma dele" (Ex 12,46). A carne de Cristo, o Santo do 
Senhor [Nota: "Sanctum Domini" O Santo do Senhor - era como os primeiros
 cristãos chamavam a Eucaristia - O Corpo e Sangue de Cristo Jesus], não
 pode ser jogado fora. Para os que nEle crêem, não há outra casa a não 
ser a única Igreja.
(6)
 O Espírito Santo anuncia e significa esta casa, esta morada da união 
dos corações, dizendo nos salmos: "Deus faz habitar na casa aqueles que 
são unânimes" (Sl 67,7). Na casa de Deus, na Igreja de Cristo, os 
moradores são unidos e perseveram na concórdia e na simplicidade.
II Parte:
9 - A POMBA, EXEMPLO DE SOCIABILIDADE E CONCÓRDIA
 
(1)
 Por isto também o Espírito Santo desceu em forma de pomba [Mt 3,16; Mc 
1,10], animal simples e alegre, sem amargura alguma de fel, incapaz de 
se enfurecer; não morde, não arranha com as unhas. Prefere as moradias 
dos homens e gosta de habitar numa mesma casa. Quando criam, as pombas 
cuidam dos filhotes juntamente, quando viajam, voam pertinho umas das 
outras. Passam o tempo em tranqüilos arrulhos, manifestam a concórdia e a
 paz beijando-se no rosto. Enfim, em todas as coisas seguem a lei da boa
 harmonia.
(2)
 Esta é a simplicidade que deve reinar na Igreja, essa a caridade que 
devemos realizar: o amor fraternal imite as pombas, a mansidão e a 
brandura sejam iguais às dos cordeiros e das ovelhas.
(3)
 Como podem estar no coração de um cristão a ferocidade dos lobos, a 
raiva dos cães, o veneno mortífero das serpentes ou a crueldade 
sanguinária das feras?
(4)
 Devemos alegrar-nos quando os que têm esses sentimentos se separam da 
Igreja. Assim as pombas e as ovelhas de Cristo não serão contagiadas 
pela sua maldade e pelo seu veneno. Não podem conciliar-se e juntar-se 
amargura e doçura, trevas e luz, chuva e céu sereno, guerra e paz, 
esterilidade e fecundidade, secura e manancial, tempestade e bonança.
(5)
 Não acreditem que os bons possam deixar a Igreja: não é o trigo que o 
vento carrega, o furacão não arranca as árvores que têm sólidas raízes. 
Ao contrário são as palhas vazias que a tormenta agita, são as árvores 
vacilantes que a força dos turbilhões abate. Contra esses o apóstolo São
 João manifesta a sua repulsa, dizendo: "Saíram do nosso meio, mas não 
eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, sem dúvida teriam ficado 
conosco" (1Jo 2,19).
10 - ORIGEM E MALDADE DAS HERESIAS
 
(1)
 A origem de onde nasceram freqüentemente e continuam nascendo as 
heresias é a seguinte: há mentes perversas e sem paz, que, discordando 
em sua perfídia, não podem suportar a unidade. O Senhor, por seu lado, 
respeita a liberdade do arbítrio humano, permite e tolera que isto 
aconteça, a fim de que o crisol da verdade purifique os nossos corações e
 as nossas mentes, e, na provação, resplandeça com luz inequívoca a 
integridade da fé.
(2)
 O Espírito Santo nos previne, por meio do Apóstolo: "Convém que haja 
heresias para que entre vós se tornem manifestos os que resistem à 
prova" (1Cor 11,19). Assim, aqui mesmo, antes do dia do juízo, são 
divididas as almas dos justos e dos perversos e as palhas são separadas 
do trigo.
(3)
 Esses são os que, por própria iniciativa e sem chamamento divino, se 
põem a encabeçar temerários grupinhos. Contra toda a lei da ordenação, 
se constituem superiores e, sem que ninguém lhes dê o episcopado, se 
atribuem a si mesmos o nome de bispos. A eles faz alusão o Espírito 
Santo, no Salmo, falando dos que estão sentados em cátedras de 
pestilência, porque são peste infecciosa da fé. Mestres na arte de 
corromper a verdade, eles enganam com bocas de serpente, vomitando de 
suas línguas pestilentas peçonhas mortíferas. Os seus discursos brotam 
como chaga cancerosa, o trato com eles deixa no fundo de cada coração um
 veneno mortal.

 
(1)
 Contra esses homens brada o Senhor, para afastar ou retirar deles o seu
 povo desviado: "Não escuteis os sermões dos pseudo-profetas, porque 
vivem iludidos pelas alucinações do seu coração. Falam, mas não as 
palavras do Senhor. Aos que rejeitam a palavra de Deus dizem eles: 
tereis a paz, vós e todos os que andam segundo as próprias vontades. Não
 virá mal algum, ainda sobre aqueles que seguem os erros do próprio 
coração. Eu não lhes falei e eles vão "profetando". Se tivessem atendido
 ao meu conselho, ouvido as minhas palavras e as tivessem ensinado ao 
meu povo, eu os teria convertido dos seus perversos pensamentos" (Jer 
23,16-22).
(2)
 E de novo fala deles o Senhor: "Abandonaram a mim, que sou a fonte da 
água viva, e escavaram para si covas escuras, que nem podem dar água" 
(Jer 2,13 [Nota: Tradução literal do texto latino antigo. As versões 
tiradas do hebraico dizem: "cisternas fendidas, que não retêm a água"]).
(3)
 Enquanto não pode haver senão um Batismo, eles pensam que podem 
batizar. Abandonaram a fonte da vida e ainda prometem a graça da água 
que dá a vida e a salvação. Lá os homens não são purificados, mas, ao 
contrário, mais poluídos. Lá os pecados não são perdoados, mas, antes, 
aumentados. Aquele nascimento não gera filhos para Deus, mas para o 
demônio [Nota: Esta recusa do batismo dos hereges é conseqüência do 
pensamento vigente. Este pensamento afirmava que qualquer violação na 
unidade da Igreja significava perversão total da fé. Hoje, a Igreja 
aceita o batismo das denominações protestantes tradicionais].
(4)
 Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente 
as promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam a graça da 
fé. Aqueles que, no delírio da discórdia, quebraram a paz do Senhor, não
 podem chegar ao prêmio da paz.
12 - "ONDE DOIS OU TRÊS..." (MT 18,20)
 
(1)
 Alguns se enganam a si mesmos com uma presunçosa interpretação das 
palavras do Senhor, que disse: "Onde quer que se encontrem dois ou três 
reunidos em meu nome, eu mesmo estou com eles" (Mt 18,20).
(2)
 São falsificadores do Evangelho e intérpretes mentirosos. Apegam-se ao 
que é dito depois, esquecendo o que foi dito antes, lembram-se de uma 
parte da frase e, astutamente, deixam do lado a outra. Assim como eles 
se separaram da Igreja, do mesmo modo truncam o sentido de uma única 
sentença.
(3)
 De fato, o que queria dizer nosso Senhor? Para inculcar aos seus 
discípulos a união e a paz, diz ele: "Eu vos afirmo que, se dois de vós 
concordarem na terra em pedir qualquer coisa, ela lhes será outorgada 
por meu Pai que está nos céus" (Mt 18,19). E continua: "Onde quer que se
 encontrem dois ou três reunidos em meu nome, eu mesmo estou com eles", 
mostrando que o que mais vale na oração não é o número dos que oram, mas
 a sua união de espírito.
(4)
 "Se dois de vós concordarem na terra", diz ele. Antes exige a união, 
põe na frente a paz: o seu primeiro e mais firme preceito é que entre 
nós haja acordo. E como poderá estar de acordo com alguém aquele que 
está em desacordo com o corpo da Igreja e a totalidade dos irmãos?
(5)
 Como poderão estar reunidos dois ou três em nome de Cristo, se é 
patente que estão separados de Cristo e do seu Evangelho? De fato não 
somos nós que nos apartamos deles, mas eles de nós. E quando, em 
seguida, formando entre si vários grupos, deram origem a heresias e 
cismas, abandonaram a cabeça e a fonte da verdade.
(6)
 O Senhor quer falar da sua Igreja e dirige aquelas palavras àqueles que
 estão na Igreja, dizendo que, se dois ou três deles estiverem 
concordes, como ele ensinou e mandou, e se reunirem em um só espírito 
para rezar, embora sejam só dois ou três, impetrarão da majestade de 
Deus o que pedem.
(7)
 "Onde quer que se encontrem reunidos em meu nome dois ou três, eu mesmo
 estou com eles", quer dizer com os simples, com os pacíficos, com os 
que temem a Deus e observam os seus preceitos. Com esses, ainda que não 
fossem mais do que dois ou três, prometeu que estaria, assim como esteve
 com os três jovens na fornalha ardente, e, porque permaneciam simples 
com Deus e unidos entre si, até no meio das chamas, os animou com uma 
brisa de orvalho (Dan 3,50).
(8)
 Do mesmo modo esteve presente aos dois Apóstolos encerrados na cadeia, 
porque eram simples e unânimes. Ele mesmo abriu as portas do cárcere e 
os conduziu de novo à praça para que pregassem à multidão a palavra que 
tão fielmente anunciavam.
(9)
 Por conseguinte, quando o Senhor coloca entre os seus preceitos estas 
palavras: "Onde quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome,
 eu mesmo estou com eles", não quer separar os homens da Igreja, pois 
ele mesmo instituiu e formou a Igreja, mas ao contrário, repreendendo os
 pérfidos pela discórdia e encarecendo, com a sua própria voz, a paz aos
 fiéis, quer mostrar que ele está mais com dois ou três que oram 
unânimes, do que com muitos que oram na dissidência, e que obtém mais a 
prece concorde de poucos que a oração sediciosa de muitos.
13 - NÃO ACHARÁ A DEUS PROPÍCIO QUEM NÃO ESTÁ EM PAZ COM O IRMÃO
 
(1)
 Por isto, quando ensinou o modo de orar, acrescentou: "Quando 
estiverdes em pé para orar, perdoai, se por acaso tendes mágoa contra 
alguém, a fim de que o vosso Pai que está nos céus vos perdoe também os 
pecados" (Mc 11,25). E se alguém vier ao sacrifício, estando de mal com 
alguém, ele o afasta do altar e ordena que, antes, se ponha de acordo 
com o irmão, e só depois volte em paz para oferecer a Deus a sua dádiva 
[Cf Mt 5,24].
(2)
 Deus não olhou aos presentes de Caim [Gen 4,5], porque aquele que, pelo
 rancor da inveja, não tinha paz com o irmão, não podia encontrar a Deus
 propício.
(3)
 Que espécie de paz podem pretender os inimigos dos irmãos? Que 
sacrifício pensam eles oferecer, enquanto não são que rivais dos 
sacerdotes? Julgam que Cristo esteja presente nas suas reuniões, 
enquanto se reúnem fora da Igreja de Cristo?
14 - NEM O MARTÍRIO LAVA A MANCHA DA DISCÓRDIA
 
(1)
 Ainda que esses homens fossem mortos pela confissão do nome cristão, o 
seu sangue não lavaria esta mancha. O pecado da discórdia é tão grande e
 tão imperdoável, que não se apaga nem pelos tormentos. Não pode ser 
mártir quem não está na Igreja, não pode alcançar o Reino quem abandonou
 aquela que nasceu para reinar.
(2)
 Cristo nos deu a paz. Ele nos mandou que fôssemos concordes e unidos, 
ordenou que os laços do amor e da caridade fossem conservados intactos e
 sem rachadura. Não pode iludir-se de ser mártir aquele que não 
conservou a caridade fraterna.
(3)
 O apóstolo Paulo ensina e testemunha isto mesmo quando diz: "Ainda que 
eu tivesse fé para remover as montanhas, mas não tivesse a caridade, eu 
nada seria, ainda que distribuísse em alimento dos pobres tudo o que é 
meu, e entregasse o meu corpo às chamas, mas não tivesse a caridade de 
nada adiantaria. A caridade é magnânima, a caridade é benigna, a 
caridade não rivaliza, não faz mal, não se pavoneia, não se irrita, não 
pensa com maldade, tudo ama, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A 
caridade jamais termina" (1Cor 13,1-9).
(4)
 A caridade nunca termina, ela estará sempre no Reino, durará 
eternamente pela unidade dos irmãos em mútua harmonia. A discórdia não 
entra no Reino dos céus. Quem, com pérfida divisão, violou a caridade de
 Cristo, não poderá chegar aos prêmios do mesmo Cristo, que disse: "Este
 é o meu mandamento, que vos ameis mutuamente como eu vos amei" (JO 
15,12).
(5)
 Quem vive sem caridade está sem Deus. Eis a voz do bem-aventurado 
apóstolo João: "Deus é amor. Quem permanece no amor permanece em Deus e 
Deus nele" (1Jo 4,16). Não podem permanecer com Deus os que não quiseram
 estar unidos na Igreja de Deus. Ainda que, lançados no fogo, fossem 
consumidos pelas chamas ou perdessem a vida sendo expostos às feras, 
tudo isto não seria uma coroa da fé, mas, antes, um castigo da sua 
perfídia, não seria o desfecho glorioso de uma vida religiosa intrépida,
 mas um fim sem esperança.
(6)
 Um homem assim poderia ser morto, mas não coroado. Ele confessa que é 
cristão do mesmo modo que o diabo, muitas vezes, engana dizendo ser ele o
 Cristo. Escutemos o aviso do Senhor: "Muitos virão com o meu nome, 
dizendo: sou eu o Cristo, e enganarão a muitos" (Mc 13,16). Como o diabo
 não é Cristo, embora tome este nome, assim não pode passar por cristão 
aquele que não permanece na verdade do Evangelho e na fé de Cristo.
15 - A LEI DO AMOR E A UNIDADE
 
(1)
 É certamente coisa incomum e admirável profetizar, expulsar demônios e 
fazer obras portentosas aqui na terra, mas quem faz todas essas coisas 
não conseguirá o Reino celeste se não anda no caminho reto e certo.
(2)
 Ouçamos ainda o Senhor: "Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, 
não te lembras que em teu nome profetizamos e em teu nome expulsamos 
demônios e em teu nome fizemos obras portentosas? Eu porém lhes direi: 
jamais vos conheci, apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade" 
(Mt 7,21-23). É necessária a justiça para que alguém possa ser premiado 
por Deus. É necessário obedecer aos seus mandamentos e aos seus avisos, 
para que os nossos méritos alcancem a recompensa.
(3)
 O Senhor, no Evangelho, querendo mostrar-nos em breve resumo a senda da
 nossa fé e da nossa esperança, disse: "O Senhor, teu Deus, é um só", e 
continua: "Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a 
tua alma, de todas as tuas forças" (Mc 12,29-31). "Eis o primeiro 
mandamento. O segundo é semelhante a ele: amarás ao teu próximo como a 
ti mesmo. Nestes dois preceitos funda-se toda a lei e também os 
profetas" (Mt 22,39-40).
(4)
 Com a sua autoridade ensinou, ao mesmo tempo, a unidade e o amor. Em 
dois preceitos compendiou a lei e todos os Profetas. Mas que unidade 
observa, que amor pensa praticar aquele que, como doido pelo furor da 
discórdia, divide a Igreja, destrói a fé, perturba a paz, aniquila a 
caridade, profana o Sacramento?
16 - ESSAS ABERRAÇÕES FORAM PREDITAS
 
(1)
 Este mal, ó irmãos fidelíssimos, já tinha começado algum tempo atrás, 
mas agora, como triste calamidade, foi crescendo dia a dia e a venenosa 
praga da heresia e dos cismas aparece e pulula sempre mais. Assim deve 
acontecer no fim do mundo, como nos vaticina e nos avisa o Espírito 
Santo por meio do Apóstolo: "Nos últimos dias, diz ele, chegarão tempos 
difíceis e haverá homens que só buscam os próprios gostos, soberbos, 
arrogantes, avarentos, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, 
desalmados, sem afeição e sem respeito de compromisso, caluniadores, 
incontinentes, violentos, sem nenhum amor ao bem, traidores, atrevidos, 
estupidamente altivos, amando mais os prazeres que Deus, ostentando um 
verniz de religiosidade, mas conculcando todo valor religioso. Deles são
 os que se insinuam nas casas e conquistam mulherzinhas carregadas de 
pecados, que se deixam levar por várias volúpias e se mostram sempre 
curiosos de saber, mas nunca chegam ao conhecimento da verdade. E como 
Jamnes e Mambres fizeram resistência contra Moisés, assim estes resistem
 à verdade. Mas não serão bem sucedidos, porque a sua incapacidade será a
 todos manifesta, como aconteceu àqueles" (2Tim 3,1-9).
(2)
 Tudo o que tinha sido preanunciado se está cumprindo e, enquanto se 
aproxima o fim do mundo, tudo se realiza nas pessoas e nos 
acontecimentos.
(3)
 O adversário está solto. Cada vez mais, o erro vai espalhando os seus 
enganos. A insensatez gera orgulho, arde a inveja, a cobiça chega até à 
cegueira, a impiedade deprava, a soberba incha, a discórdia exaspera, a 
ira enfurece.
III Parte:
17 - NÃO CEDER AO ESCÂNDALO. EVITAR OS HEREGES
 
(1)
 Porém não nos impressione nem perturbe essa desmedida e temerária 
perfídia de muitos. Ao contrário, torne-se mais forte a nossa fé ao 
constatarmos a verdade do que foi profetizado. Alguns fizeram-se 
traidores, porque assim fora predito; os demais irmãos, em virtude da 
mesma profecia, acautelem-se contra essas coisas, escutando a voz do 
Senhor, que diz: "Vós, porém, acautelai-vos, porque eis que eu vos 
predisse tudo" (Mc 13-23).
(2)
 Evitai, pois, eu vo-lo peço, irmãos, esses homens e repeli, de vosso 
lado e de vossos ouvidos suas perniciosas conversas, como se repele um 
contágio mortífero. Está escrito: "Cerca os teus ouvidos com uma sebe de
 espinhos e não ouças a língua maldosa" (Eclo 28,24). E ainda: "As 
péssimas conversas corrompem até as pessoas de boa índole" (1Cor 15,33).
 O Senhor nos recomenda que evitemos essa gente. "São cegos, diz ele, e 
guias de cegos. Quando é um cego que conduz outro cego, caem juntos na 
fossa" (Mt 15,14).
(3)
 Convém estar longe e fugir de qualquer um que se separou da Igreja. É 
um transviado, um culpado, ele se condena por si próprio [Cf Ti 3,11]. 
Poderá pensar que está com Cristo aquele que está tramando contra os 
sacerdotes de Cristo e se separa da comunidade do seu clero e do seu 
povo? Ele levanta armas contra a Igreja e resiste às ordens de Deus. 
Adversário do altar, rebelde contra o Sacrifício de Cristo, traidor na 
fé, sacrílego na religião, servo intratável, filho ímpio, irmão inimigo,
 despreza os bispos e abandona os sacerdotes de Deus e ousa erguer um 
outro altar, pronunciar com voz ilícita uma outra prece, profanar, com 
falsos sacrifícios, a Hóstia do Senhor, e esquece que quem vai contra as
 ordens de Deus será punido com os divinos castigos pela sua atrevida 
audácia.
[Nota:
 Parece até intolerância de S. Cipriano, mas defender a fé não é 
intolerância. A culpa não é tanto estar fora da Igreja "in-fidelis", mas
 em ter saído da Igreja e teimar numa fé espúria e pervertida 
"perfídia". S. Cipriano deseja defender os que permanecem na Igreja, das
 falsas doutrinas dos hereges, e não incitar um preconceito gratuito].
18 - CASTIGOS DOS PROFANADORES DO CULTO
 
(1)
 Assim Coré, Datã e Abirão receberam, sem demora, o castigo da sua 
presunção, porque, violando as ordens de Moisés e do sacerdote Aarão, 
pretenderam usurpar o direito de oferecer sacrifícios [Cf Num 16,31-35].
 A terra perdeu a sua firmeza, fendeu-se numa profunda voragem, e o 
chão, assim aberto, os engoliu vivos e em pé. A justiça indignada de 
Deus não atingiu só os autores daquele gesto, mas também os outros 
duzentos e cinqüenta, seus companheiros, que foram cúmplices e 
solidários com eles. De repente saiu do Senhor um fogo punitivo e os 
consumiu. Isto deve valer como demonstração e sinal de que foi ofensa 
contra Deus tudo o que aqueles perversos tentaram, com suas vontades 
humanas, para frustrar as ordens do próprio Deus.
(2)
 Assim aconteceu também ao rei Ozias, quando segurou o turíbulo e, com 
violência, pretendeu oferecer ele mesmo o incenso, violando a lei de 
Deus e desobedecendo ao sacerdote Azarias, que a isto se opunha [Cf 
2Crôn 26,16-20]. Lá mesmo foi confundido pela divina indignação e 
acometido por uma espécie de lepra na fronte. Pela sua ofensa a Deus, 
foi punido justamente naquela parte do corpo, onde recebem o sinal (da 
cruz) os eleitos de Deus.
(3)
 Também os filhos de Aarão, por ter colocado no altar um fogo profano, 
contra os preceitos do Senhor, foram mortos no mesmo instante pela 
divina vingança [Cf Lev 10,1-2; Num 3,4].
19 - MENOS GRAVE É O PECADO DOS LAPSOS*
 
(1)
 São esses os exemplos que seguem e imitam os que buscam doutrinas 
estranhas, introduzem ensinamentos de invenção humana e desprezam a 
divina tradição. A eles aplicam-se as repreensões e as censuras do 
Evangelho: "Rejeitais o mandamento de Deus para apegar-vos à vossa 
própria tradição (pagã)" (Mc 7,90).
(2)
 Este crime é pior do que aquele que se pensa terem cometido os lapsos, 
ao menos se falarmos dos que estão arrependidos e rogam a Deus perdão do
 seu pecado, dispostos a dar completa satisfação. Os lapsos, com 
súplicas, procuram a Igreja, os cismáticos combatem-na. Os primeiros 
podem ter sido vítimas de alguma pressão, os segundos erram no pleno uso
 da sua liberdade. O lapso, pecando, se prejudicou unicamente a si 
mesmo, ao passo que aquele que tenta criar heresias e cismas engana a 
muitos, arrastando-os à sua seita. Lá há detrimento de uma só alma, aqui
 o perigo é de muitos. O lapso reconhece que certamente pecou, disto 
lamenta-se e chora, o cismático, cheio de orgulho no seu coração e 
comprazendo-se dos seus próprios erros, arranca os filhos à mãe, afasta,
 com aliciamentos, as ovelhas do Pastor, arrasa os divinos Sacramentos.
(3)
 O lapso pecou só uma vez, o outro continua pecando a cada dia. Por fim,
 o lapso, mais tarde, poderá enfrentar o martírio e conseguir as 
promessas do Reino, o cismático, ao contrário, se for morto enquanto 
está fora da Igreja, não alcançará os prêmios da Igreja.
[nota:
 * Lapsos era o nome dado aos cristãos que durante a perseguição tinham 
sacrificado incenso aos ídolos, o que significava renúncia à fé. Para 
serem reintegrados na comunidade da Igreja deviam se submeter às 
penitências prescritas].
20 - CONFESSORES* QUE NÃO PERSEVERARAM
 
(1)
 Não deveis estranhar, irmãos diletíssimos, que até entre os confessores
 haja alguns que caíram nestes crimes. Acontece também que alguns deles 
cometam outros pecados graves e vergonhosos. A confissão da fé não torna
 uma pessoa imune das ciladas do demônio. A quem ainda vive neste mundo 
ela não comunica uma perpétua segurança contra as tentações, os perigos e
 o ímpeto dos ataques mundanos. Se assim fosse, não veríamos, em 
confessores, os roubos, os estupros e os adultérios, que agora, com 
imensa tristeza, devemos lamentar em alguns deles.
(2)
 Quem quer que seja um confessor, ele não poderá ser maior, melhor e 
mais amigo de Deus que Salomão. Entretanto, este, durante o tempo em que
 se manteve nos caminhos do Senhor, conservou a benevolência com que o 
mesmo Senhor o tinha favorecido, mas quando se desviou destes caminhos, 
perdeu também a benevolência do Senhor [3Rs 11,9].
(3)
 Por isto diz a Escritura: "Segura o que tens, para que um outro não 
tome a tua coroa" (Ap 3,11). Se lá o Senhor ameaça tirar a alguém a 
coroa da justiça, é sinal que quem renuncia à justiça fica privado 
também da coroa.
[nota:
 * Os confessores eram os cristão que afirmavam a fé perante os 
perseguidores, e por um motivo ou outro, não eram condenados a morte. 
Alguns deles, cheios de soberba pelo ato de fé que praticou, achavam que
 tinham o direito de dar o aval aos lapsos (ver nota acima) e 
reintegrá-los na comunidade sem as penitências. Alguns confessores se 
tornaram cismáticos].
21 - A HONRA DA "CONFISSÃO" AUMENTA O DEVER DO BOM EXEMPLO
 
(1)
 A confissão da fé é um preâmbulo da glória, mas não é ainda a posse da 
coroa. Não é a glória definitiva, mas só o início do mérito. Está 
escrito: "O que perseverar até o fim, este será salvo" (Mt 10,22). Tudo 
pois o que fazemos antes do fim é só um passo com o qual vamos subindo 
ao monte da salvação, mas só ao fim da subida chegaremos à posse 
perfeita do cume.
(2)
 Trata-se de um confessor? Ora, depois da confissão da fé, o perigo 
torna-se maior, porque o adversário está mais enraivecido contra ele.
(3)
 É confessor? Por isto, mais do que nunca, deve permanecer fiel ao 
Evangelho do Senhor, ele que pelo Evangelho conseguiu esta honra. Diz o 
Senhor: "A quem muito é dado, muito será pedido e a quem é concedida 
maior dignidade, deste exigem-se maiores serviços" (Lc 12,48). Ninguém 
se deixe levar à perdição pelo mau exemplo de algum confessor. Ninguém 
aprenda, do seu modo de proceder, a injustiça, a arrogância ou a 
perfídia.
(4)
 É confessor? Seja humilde e tranqüilo em todo o seu comportamento, seja
 disciplinado e modesto, de modo que, como é chamado confessor de 
Cristo, imite também aquele Cristo que confessa "Quem se exalta será 
humilhado e quem se humilha será exaltado" (Lc 18,14). Assim disse ele, e
 foi exaltado pelo Pai, porque, sendo ele a Palavra, a Virtude e a 
Sabedoria de Deus Pai, se humilhou a si mesmo na terra. E como poderia 
amar a altivez, ele que, com a sua lei nos preceituou a humildade, e, em
 prêmio da sua humildade, recebeu do Pai o nome mais sublime? [Cf Flp 
2,9]
(5)
 Alguém foi confessor de Cristo? Muito bem, mas, depois, por sua culpa, 
não sejam blasfemadas a majestade e a santidade do próprio Cristo. A 
língua que confessou a Cristo não seja maldizente nem sediciosa, não se 
ouça vociferando em altercações e brigas; depois de palavras tão divinas
 de louvor não vá vomitando veneno de serpente contra os irmãos e contra
 os sacerdotes de Deus.
(6)
 Em suma, se alguém, depois da confissão, se tornou culpável e 
detestável, se aviltou a sua confissão com maus comportamentos, se 
manchou a sua vida com torpezas indignas, se, afinal, abandonou a 
Igreja, na qual se tornara confessor, e, quebrando a harmonia da 
unidade, trocou a fé de então com a perfídia, um tal homem não pode 
lisonjear-se, presumindo da sua confissão, de ser como que predestinado 
ao prêmio da glória. Ao contrário, por isto mesmo, aumentaram seus 
títulos para o castigo.
22 - ELOGIO DOS CONFESSORES
 
(1)
 Vemos também que chamou a Judas entre os Apóstolos, e este Judas, em 
seguida, traiu o Senhor. A fé e a perseverança dos Apóstolos não 
esmoreceram pelo fato que Judas traidor tinha pertencido ao seu grupo. 
Igualmente em nosso caso: a santidade e a dignidade dos confessores não 
ficam destruídas, se naufragou a fé em alguns deles.
(2)
 O bem-aventurado apóstolo Paulo diz numa das suas cartas: "Se alguns 
decaíram da fé, será que a sua infidelidade tornou vã a fidelidade de 
Deus? De modo algum. De fato, Deus é verídico e todo homem é mentiroso" 
(Rom 3,3-4; Sl 115,11).
(3)
 A maioria e a parte melhor dos confessores mantém-se no vigor da sua fé
 e na verdade da lei e da disciplina do Senhor. Lembrando-se de ter 
alcançado a graça e a benevolência de Deus na Igreja, não se afastam da 
paz da mesma Igreja. Nisto merecem mais amplo louvor pela sua fé, 
porque, desligando-se da perfídia daqueles que já foram seus 
companheiros na confissão, resistiram ao contágio do mal. Iluminados 
pela luz verdadeira do Evangelho, brilhando na pura e cândida claridade 
do Senhor, mostram-se tão dignos de encômio na conservação da paz de 
Cristo, quanto o foram no combate, quando se tornaram vencedores do 
demônio.
23 - APELO AOS QUE FORAM ENGANADOS
 
(1)
 Quanto a mim, irmãos diletíssimos, não deixo de exortar e insistir, 
porque desejo que, se for possível, nenhum dentre os irmãos pereça, e a 
mãe feliz (a Igreja) abranja no seu regaço o seu povo, unido na 
concórdia como um só corpo. Se, todavia, este salutar conselho não 
consegue reconduzir ao caminho da salvação certos chefes de cismas e 
certos autores de dissensão, preferindo eles obstinar-se em sua cega 
demência, ao menos os demais, os que foram surpreendidos na sua 
simplicidade, ou se deixaram desviar por algum equívoco, ou foram 
enganados pelo ardil de uma astúcia dissimulada, ao menos vós sacudi os 
laços falaciosos, livrai dos erros os vossos passos extraviados, sabei 
reconhecer o caminho reto que conduz ao céu.
(2)
 Ouvi a voz do Apóstolo, que clama: "Em nome de nosso Senhor Jesus 
Cristo, nós vos mandamos, diz ele, que vos afasteis de todos os irmãos 
que andam desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de 
nós" (2Tes 3,6). E de novo: "Ninguém vos engane com vãs palavras. Por 
causa disto veio a ira de Deus sobre os filhos da contumácia. Não 
estejais, pois, ao lado deles" (Ef 5,6-7).
(3)
 Deveis evitar os delinqüentes e até fugir deles, para que não aconteça 
que, juntando-se aos que trilham os caminhos do erro e do crime, alguém 
se desvie também da verdade e se torne culpado de igual delito.
(4)
 Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé e o povo (cristão)
 é também um, aglutinado pela concórdia como na compacta unidade de um 
corpo. Esta unidade não pode ser quebrada. Um corpo não pode ser 
dividido, desarticulando as suas junturas. Não pode ser reduzido a 
pedaços, dilacerando e arranhando as suas vísceras. Tudo o que se separa
 do centro vital não pode continuar a viver ou a respirar porque fica 
privado do alimento indispensável à vida.
24 - BEM-AVENTURADOS OS PACÍFICOS
 
(1)
 O Espírito Santo assim nos fala: "Quem é o homem que quer viver e 
deseja ver dias excelentes? Refreia do mal a tua língua, e os teus 
lábios não falem insidiosamente. Evita o mal e faze o bem, busca a paz e
 segue-a" (Sl 33,13-15). O filho da paz deve buscar a paz, deve 
procurá-la. Quem conhece e ama o vínculo da caridade deve guardar a sua 
língua do flagelo da dissensão.
(2)
 O Senhor, já próximo à paixão, entre outros preceitos e ensinamentos 
salutares, acrescentou o seguinte: "Eu vos entrego a paz, eu vos dou a 
minha paz" (Jo 14,27). Esta é a herança que nos deixou. Todos os dons e 
todos os prêmios das suas promessas estão incluídos nisto: a 
inviolabilidade da paz.
(3)
 Se somos co-herdeiros de Cristo [Cf Rom 8,17], permaneçamos na paz de 
Cristo. Se somos filhos de Deus, sejamos pacíficos. "Bem-aventurados os 
pacíficos, diz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). Convém, 
pois, que os filhos de Deus sejam pacíficos, mansos de coração [Cf Mt 
11,29], simples quando falam, concordes nos afetos, sempre ligados uns 
aos outros pelos laços da unidade de espírito.
25 - O EXEMPLO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS
 
(1)
 Essa unidade reinou ao tempo dos Apóstolos e a nova plebe, o povo dos 
que acreditaram, guardava os preceitos do Senhor e ficava fiel à sua 
caridade. Prova-o a divina Escritura, dizendo: "A multidão daqueles que 
acreditaram se comportava como se fossem todos uma só alma e uma só 
mente" (At 4,32).
(2)
 E antes: "Estavam perseverando todos unânimes na oração com as mulheres
 e Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos" (At 1,14). Por isto oravam de 
modo eficaz e podiam confiar em alcançar o que estavam pedindo à 
misericórdia divina.
26 - EXORTAÇÃO PARA UMA VIDA CRISTÃ INTEGRAL
 
(1)
 Entre nós, ao contrário, esta união está demasiado relaxada, e ao mesmo
 tempo aparece muito enfraquecida a generosidade nas obras (boas). Então
 vendiam as suas casas e as suas propriedades e entregavam o preço aos 
Apóstolos, para que fosse distribuído aos pobres: assim colocavam seus 
tesouros no céu [Cf Mt 6,19]. Hoje nem se dão os dízimos dos patrimônios
 e, enquanto o Senhor diz "vendei" [Cf Lc 12,33], nós preferimos comprar
 e possuir mais. Como, entre nós, murchou o vigor da fé, como esmoreceu a
 força daqueles que crêem!
(2)
 Por isto o Senhor, falando destes nossos tempos, diz no Evangelho: 
"Quando vier o Filho do homem, pensas que encontrará fé na terra?" (Lc 
18,8). Vemos que está acontecendo o que ele predisse. No que diz 
respeito ao temor de Deus, à lei da justiça, ao amor, às obras, não há 
mais fé. Ninguém se preocupa com as coisas que hão de vir, ninguém pensa
 no dia do Senhor, na ira de Deus, nos futuros suplícios dos incrédulos,
 nos eternos tormentos destinados aos pérfidos. Se crêssemos, a nossa 
consciência teria medo de tudo isto. Se não temos medo é sinal que não 
cremos. Quem acredita se acautela, quem se acautela se salva.
(3)
 Despertemos, irmãos diletíssimos, quebremos o sono da inércia rotineira
 e, por quanto for possível, sejamos vigilantes em guardar e cumprir os 
preceitos do Senhor. Sejamos prontos, como ele seja, quando diz: 
"Estejam cingidos os vossos rins, e as lâmpadas acesas nas vossas mãos, e
 vós sede semelhantes a homens que esperam o seu dono, quando voltar das
 núpcias, para lhe abrirem logo que ele chegar e bater. Bem-aventurados 
os servos que o Senhor, chegando, encontrar vigilantes" (Lc 12,35-37). É
 necessário que estejamos cingidos, a fim de que, quando vier o dia da 
partida, não sejamos surpreendidos cheios de impedimentos e de 
embaraços. Fique sempre viva a nossa luz e brilhe em boas obras, para 
nos guiar da noite deste mundo aos esplendores da claridade eterna. 
Sempre solícitos e cautos, fiquemos à espera da chegada repentina do 
Senhor. Quando ele bater, encontre a nossa fé vigilante com uma tal 
vigilância que mereça receber o prêmio do mesmo Senhor.
(4)
 Se forem observados esses mandamentos, se forem postas em prática essas
 exortações, não acontecerá que sejamos vencidos, no sono, pela falácia 
do demônio, mas, como servos bons e vigilantes, reinaremos com Cristo 
glorioso.
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